22° Registro - A Queda da Zona Segura - Parte 1 de 2


O DIÁRIO

Foi uma tragédia. Infelizmente eu estava certo. Que porcaria. Que droga de vida!

Estou totalmente abalado. Totalmente em pânico. Faz poucos minutos que consegui parar de tremer e pensei em escrever algo aqui. Eu já tinha desanimado. Queria largar tudo. Esse inferno está nos consumindo aos poucos. Estamos morrendo aos poucos. Morrendo psicologicamente. Estamos cansados, com fome. Vivendo em condições precárias. Dormimos no chão. Isso quando conseguimos dormir. Qualquer ruído, o menor que seja já nos deixa apavorados. Não vivemos para sermos caçados. Nunca estaremos preparados para essa “nova vida”. Droga.

Meu blog já era. Perdi meu notebook na confusão. Quem me encorajou a pegar um caderno e escrever foi meu irmão. Não sei se vale a pena. Mas por enquanto está sendo uma terapia escrever nesse caderno. Vou leva-lo comigo. Vou escrever tudo. Talvez alguém encontre isso aqui um dia e saiba que eu e os meus lutamos para sobreviver. E lutamos bravamente.

***

Ver um caos generalizado é totalmente perturbador. A dor, o sofrimento, o desespero, o pânico, o medo, tudo a flor da pele. Pessoas correndo, gritando, chorando, morrendo. E para piorar tudo, as criaturas. Mortos vivos sedentos de carne e sangue com um único objetivo: Matar. Nem a pessoa mais louca da terra se imaginaria numa situação dessas. Foi um massacre.

Eu ainda escrevia no blog quando os tiros começaram. Um, dois, dez, setenta, cem. Muitos tiros. Metralhadoras, pistolas e outras armas que eu não conheço. Começou a correria entre os militares. Nesse instante as pessoas já começaram a se desesperar. Crianças começaram a chorar. Alguns começaram a passar mal. Meu irmão estava ao meu lado. A sua cara parecia de surpresa, com certeza assustado. Ele não fazia ideia do que estava acontecendo do lado de fora do quartel. Ele ficou em pé e pediu para eu tentar ouvir algo no rádio. Peguei o rádio e tentei ouvir algo. O som de tiros era ensurdecedor. Mas uma coisa eu consegui ouvir;

– São muitos! – gritou um soldado.
– Recuem! – gritou outro.

Assim que ele olhou pra mim e viu minha cara de assustado o alarme soou. Um ensurdecedor alarme. PDA. Plano de defesa do aquartelamento. Então os militares começaram a entrar em forma de combate. Aguardando uma guerra que estava prestes a começar. Gustavo foi sair correndo e eu segurei seu braço.

– Chegou a hora. Não temos o que fazer. – falei para ele.

Ele olhou para os militares em forma e pensou. Talvez estivesse mais assustado do que eu. Pobre irmão. Seu uniforme militar às vezes me fazia esquecer que ele ainda era um garoto de vinte anos.

– Vamos. – ele disse.

Enquanto corríamos em direção a Amanda que já estava em pânico, Gustavo ouviu no rádio que os militares já haviam recuado para o portão principal. Foi então que ouvimos algo mais. Uma explosão. Olhei para ele que me disse simples e curto;

– Granada.

Carlos. O Sargento que fazia parte do nosso plano se aproximou. Trocou algumas palavras com meu irmão e saiu correndo. Foi dar continuidade ao nosso plano. Me aproximei do meu irmão e imediatamente ele percebeu que estávamos em problemas. Ele correu para avisar o resto do pessoal que havia se juntado a nós.

O inferno estava se aproximando. Era hora de fugir.

***

“Desespero é a aflição em se ver sem esperanças”.

Não me recordo se li ou ouvi essa frase uma vez. Só sei que ela retrata totalmente o inferno que nós estávamos vivendo naquele quartel.

Cerca de dez minutos depois que meu irmão ouviu no rádio que os soldados haviam recuado para o portão principal, eu ouvi outro aviso. “Eles haviam chegado”! Sim, as criaturas já estavam no portão principal. É um portão de grade enorme, mas não é resistente. Nada resistente. Os tiros e as explosões, causadas pelas granadas, continuavam. Naquele momento eu já estava preparado para fugir, juntamente com meu irmão, Amanda e mais quatro pessoas que fizemos amizade. Carlos, o Sargento com seus quarenta e poucos anos. Sua esposa Sofia, também com essa faixa de idade. E dois rapazes, primos, André e Ricardo. Os dois deveriam ter uns vinte e poucos anos. Estávamos esperando Carlos, que por sinal estava demorando.

Foi então que vimos à correria. Eu sinceramente já esperava por isso. As pessoas que estavam próximas ao portão principal correram para os hangares mais distantes, no caso o nosso, que era um dos maiores. A rua estava lotada de pessoas correndo, gritando, tropeçando uma nas outras. Os soldados que faziam uma “ultima linha de defesa” ficaram sem reação. Abriram caminho para a multidão desesperada. Enquanto isso a chuva apertava, deixando a situação ainda mais horrível.

Ouvi no rádio que o numero de soldados mortos já era grande. Então vimos ao longe o inferno. Soldados recuavam com rapidez. Através de viaturas, caminhões ou correndo. Quem estava a pé continuava atirando ou jogando granada. Mesmo com a forte chuva nós os enxergamos. Dezenas, centenas e talvez milhares deles. Muitos, mas muitos mesmo. Homens, mulheres, crianças. Jovens, velhos. Brancos, negros. De todos os tipos. Muitos pareciam seriamente mutilados, com partes do corpo seriamente feridas e expostas. Na face o terror. A vontade de matar. O anseio em sentir o gosto do sangue correndo pela garganta. Eram muitos. Estávamos acabados.

Naquele momento Carlos se aproximou e me deu uma mochila. Estava totalmente pesada. Eu sabia o que havia ali dentro. Olhei novamente pra ver se estávamos todos reunidos. E então corremos. Sim, corremos.

– Mas e o Rodrigo? – gritou Amanda enquanto meu irmão a puxava pelo braço.
– Sinto muito Amanda. Não temos tempo para isso! – eu gritei. – Todo mundo que estava lá na frente correu para cá. Rodrigo deve estar entre eles. Vamos.

Amanda não reagiu. Sabia que seria suicídio não fugir dali. Olhou para trás uma ultima vez. E deixou ser levada.

Saímos da frente do hangar e fomos em direção à estrada de terra que passava por detrás dele. Aquele era um bom plano, se não fosse por uma simples coisa. Muitos acabaram nos seguindo. Ainda bem que meu irmão e eu pensamos que aquilo realmente poderia acontecer. Muitas pessoas correram atrás de nós, achando que também estávamos fugindo dali para sobreviver. Isso era verdade, mas tínhamos um plano já montado. Assim que começamos a nos afastar do hangar a escuridão começou a tomar conta da estrada de terra. Carlos, meu irmão e eu pegamos três lanternas que já havíamos trazido para isso. Carlos, que conhecia muito bem o lugar, foi nos guiando. Em certo momento ele desligou sua lanterna e pediu para meu irmão e eu desligarmos a nossa. Então nos guiou para um caminho a esquerda, para dentro da mata. Dentre os muitos que nos seguiam, alguns também possuíam lanterna. A forte chuva atrapalhava um pouco a visão, então eles não viram que havíamos saído da estrada. Seguiram pela direita, continuando a estrada e foram embora.

– Nosso caminho não é pela estrada. Não nesse trecho. – disse Carlos. – Vamos seguir pela mata e com certeza vamos chegar onde temos que chegar. – concluiu ele, já saindo andando.

Nós o seguimos mata adentro. Não podíamos acender as lanternas, senão seriamos vistos. Então andamos em fila indiana, cada um com a mão no ombro do outro. Carlos foi guiando. Ao longe ainda ouvíamos tiros, mas dessa vez eram em menor quantidade. A gritaria continuava. Os gritos das pobres pessoas perecendo nas mãos daquelas criaturas. Tínhamos que sair dali rapidamente.

Chegamos então a um ponto que saímos novamente na estrada.

– Estamos bem à frente da multidão. – disse Carlos.

Continuamos pela estrada e chegamos a um ponto que fazia parte do nosso plano. Lá estava ela. A viatura militar que usaríamos para fugir. Assim que nos aproximamos do carro, eles apareceram. Quatro homens, saindo de não sei onde.

– Vocês estão fugindo? Precisamos de ajuda. Podemos ir com vocês? – perguntou um dos rapazes. No mesmo instante eu reconheci a voz.
– Mateus? – perguntei.
– Gabriel? – perguntou o rapaz me reconhecendo.

Mateus era um amigo. Havia trabalhado comigo ano passado. Desde sua saída do trabalho eu não tinha contato com ele. Não sabia que ele estava refugiado no quartel. O reencontro seria motivo de celebração, não fosse o inferno que estávamos vivendo. Mas algo pior ainda aconteceu.

Eu sabia que não teria como ajudar todos que estavam com Mateus. A viatura estava equipada com coisas que Carlos foi colocando ao longo do tempo que bolamos o plano. Só tinha lugar para os que estavam conosco. Mais um no máximo.

– Sinto muito. – disse Carlos. – A viatura está lotada.
– Por favor, Gabriel? – pediu Mateus.

Eu achei que os rapazes que estavam com ele também iriam se desesperar e começar a implorar por ajuda. Mas algo mais estranho aconteceu. Um deles, o mais velho, deu um passo à frente. Segurava na mão uma arma. Acho que era um revolver 38. Ele jogou a luz de sua lanterna no rosto de Carlos e falou;

– Então vamos ter que tirar essa viatura de vocês.

Escrito 13/08/2012 ás 10h05. Taubaté-SP

21° Registro - Sobreviventes - Parte 4 de 4


Já faz umas duas horas que chove sem parar. Um temporal pavoroso.

Estou escrevendo isso enquanto inúmeros trovões ecoam sobre o céu. A chuva chegou chegando. Sem dó nem piedade.

Hoje ouvi algo no rádio escondido que tenho aqui. Pessoas ligadas ao governo do estado de São Paulo sobreviveram e estão tentando tomar medidas cabíveis para o ocorrido. Mas o mistério de “como mortos vivos estão andando pelas ruas”, esse ninguém desvendou ainda.

Acabei de voltar de uma visita a cadeia. Por causa de Amanda é claro. Meu irmão a trouxe até aqui hoje. Ela queria falar comigo. Queria que eu libertasse Rodrigo e deixasse os dois em paz lá no primeiro prédio do quartel, longe de mim. Tentei colocar na cabeça dela o quanto Rodrigo estava instável nos últimos dias. Isso seria perigosíssimo. Mas ela insistiu. Fiz por ela. Não por ele. Queria distancia dele. No caminho até a prisão eu contei meu plano para Amanda. Deixei bem frisado que a intenção era executá-lo somente em caso extremo. Nossa vontade era que nada acontecesse. Mas estaríamos preparados caso algo acontecesse.

Meu plano é o seguinte: Ele conta com a ajuda do meu irmão e outro militar de nome Carlos (o mesmo que autorizou meu irmão a retornar e ir até a casa da minha namorada me encontrar). Os dois conseguiram levar uma viatura militar até uma área isolada atrás do ultimo andar. Lá nós começamos a encher a viatura de mantimentos e utensílios necessários para muitas pessoas. A viatura está escondida e aguardando uma possível fuga de ultima hora. Como eu disse, espero que isso não aconteça. Mas caso aconteça, nós teremos como fugir. Não somos egoístas tentando fugir e deixar milhares para trás. Mas também não podemos contar para todo mundo. Tentamos fazer uma reunião com o tal Major Almeida, responsável pelo comando do exército, mas ele nem quis nos ouvir. Não podemos fazer uma assembleia e sair convidando todo mundo para ir embora. Os militares estão por um fio com toda essa situação dor mortos-vivos. Seria simples pra eles nos calarem rapidamente por atiçar a multidão com “falsas teorias”.

Deixei Amanda a par das coisas e a convidei para vir conosco caso algo acontecesse. Mas ela estava ciente de que eu não iria querer Rodrigo como companhia. Então era praticamente certo de que ela não viria conosco.

Na entrada da prisão, Amanda, meu irmão e eu fomos abordados por um militar que rapidamente autorizou nossa entrada. Passamos por uma sala vazia, viramos a direita num corredor sem portas e a esquerda, onde estavam as celas. Eram três celas, uma ao lado da outra. Rodrigo estava deitado na cama de uma das celas, provavelmente dormindo ou fingindo estar, já que o guarda anunciou nossa chegada antes. Não me aproximei muito. Deixa Amanda se aproximar e conversar com ele. A conversa durou cerca de cinco minutos. Quando ela voltou estava com os olhos irritados. Provavelmente havia chorado.

– Ele não quer ser libertado por você. – disse ela.
– Então diga para ele que ninguém mais vai fazer isso por ele. – comentei.
– Eu disse. – falou ela tentando segurar o choro. – ele não quer ter essa dívida com você.
– Sinto muito moça. – disse meu irmão. – Esse rapaz parece determinado do que diz. Acho melhor você vir com a gente e esperar ele mudar de ideia.
– Isso se ele mudar. – ela comentou.
– Venha Amanda. Amanha eu trago você aqui novamente e você conversa com ele. – disse eu levando ela para fora da prisão.

Passei o resto da tarde conversando com algumas pessoas aqui. É curioso e assustador saber o que cada uma passou quando viu essas criaturas na rua. Um cara, Tiago, disse que foi surpreendido no quintal de sua casa pelo seu tio, que havia virado um morto vivo. Infelizmente seu tio acabou matando seu pai. Ele fugiu com sua mãe e depois de muito sofrimento foi encontrado pelos militares próximo a uma faculdade no Bairro Vila das Graças aqui em Taubaté. Uma moça, chamada Gisele, contou que estava em casa com seu marido quando tudo aconteceu. Eles fugiram de sua casa com o carro. Ao sair na rua acabaram atropelando uma pessoa. Quando saíram para prestar socorro viram mais criaturas, e algumas avançavam em pessoas que corriam pela rua. Em pânico eles entraram no carro e foi para sua casa, mas não conseguiu chegar, pois o caos era absoluto. Ela juntou-se a um grupo de cinco sobreviventes e vieram imediatamente para o quartel, após ideia de um deles.

As histórias mudam de pessoa para pessoa, mas o terror é o mesmo. Pessoas que morreram por causa da gripe se transformaram em criaturas canibais e querem matar os vivos. Acho que estou calejado sobre isso tudo. Mas isso não significa que eu tenha sangue frio. Não tem uma noite que eu consiga dormir tranquilamente. As imagens desses monstros sempre aparecem em minha cabeça. Isso também é nítido em todas as pessoas aqui. Todos estão tremendamente aterrorizados. Mas muitos já entregaram suas vidas nas mãos dos militares. Vejo que a maioria está mais “tranquila”. Isso é um erro gravíssimo. Mas infelizmente não posso fazer nada. Pelo menos eu deixei isso bem claro para aqueles próximos a mim. Não podemos nos acomodar. Tudo mudou. Estamos seguros? Sim, com certeza. Não sou retardado de dizer que não estamos. Mas 99% da população de Taubaté virou zumbi e estão sedentos de carne dos “vivos”. Como eu já deixei bem claro, se toda essa população de mortos vivos decidirem vir para cá, vai ser um massacre. Infelizmente esse é o meu pensamento. Tudo isso aqui é uma “falsa segurança”. Temos que acordar para o novo mundo. Um mundo de terror. Não existe mais trabalho durante semana. Não existe mais futebol aos fins de semana. Nada do que fazíamos antes existe mais. Agora é só sobreviver e sobreviver. Cada segundo aqui pode ser o nosso ultimo. Que merda. E pra ajudar tem essa chuva castigando a todos nós.

Agora a pouco meu irmão veio novamente falar comigo. Não sei como, mas ele conseguiu alguns mapas. São dois mapas. Cidade de Taubaté e um da região. Meu irmão é uma mão na roda. Ele tem me ajud...

Estou ouvindo tiros. Bem ao longe. Mas definitivamente são tiros. Espero que esses militares saibam o que estão fazendo.

Como eu estava dizendo. Meu irmão tem me ajudado muito. Ele...

MEU DEUS! Acionaram o PDA! Alguma coisa está acontecendo! Os militares estão sendo solicitados no Portão principal. Vou ver o que está acontecendo...

Que não seja o que eu estou pensando... Não... Não... Não...

Não pode ser!

Postado 10/08/2012 ás 23h18. Taubaté-SP

20° Registro - Sobreviventes - Parte 3 de 4


Estou angustiado. Não consigo dormir. Preciso encontrar minha namorada.

Nos últimos dias não parei de pensar em minha namorada e na possibilidade de ir encontrá-la. Será que ela e seus familiares conseguiram chegar ao sitio do seu tio? Isso é uma nova esperança para mim. Mas existe um empecilho. Os militares não deixam ninguém sair daqui. Já que a cidade caiu, eles assumiram o comando. Eles são a autoridade. E deixaram bem claro que quem desobedecesse iria sofrer as consequências. Que desgraçados. O mundo se acabando nessa porcaria toda e eles resolvem criar problemas com os sobreviventes.

O silencio da noite é perturbador. Só ouço os passos dos guardas, que estão de sentinelas, andando de um lado para o outro. Estamos alojados no ultimo hangar do quartel. Eu preferi assim, bem longe da entrada. Por quê? Por causa de uma pequena teoria que tenho.

Algo que compartilhei com muitas pessoas para ver se resolvia algo, mas que não deu em nada. Somente meu irmão aderiu a minha causa. Diz ele que vai conversar com mais pessoas sobre isso. O problema é o seguinte: Quando chamei a atenção das criaturas na rua da casa da minha namorada, elas foram atraídas pelo som e seguiram meu carro. Esses seres são atraídos por barulho. Isso é totalmente confirmado. Veja bem, estamos todos empipocados aqui. Segundo os militares são mais de quatro mil pessoas espalhadas em todo o quartel, contando com as vilas militares, que são as casas dos miliares, que também estão servindo de abrigo, principalmente para os mais velhos e os militares é claro. O alvoroço é enorme. O falatório chega a irritar. Fora as aeronaves que partem e chegam quase todo o dia. (Apesar de que desde ontem a tarde nenhuma aeronave chega até aqui). O que será que pode ter acontecido? Infelizmente hoje em dia só se pode pensar o pior.

Onde eu quero chegar com minha teoria? Tenho a leve impressão de que todas as criaturas da cidade estão sendo atraídas para cá. Os militares dizem que isso é impossível, mas caso aconteça estarão totalmente preparados. É isso que tira o meu sono. Não creio que eles estejam preparados. Precisamos pensar em alguma coisa. Temos alguns planos em mente caso aconteça uma tragédia.

***

Todo mundo gosta de estar certo em uma discussão. Ouvir a deliciosa frase: “Tá ok, você tem razão. Desculpe-me”. Nesse momento, eu odeio estar certo. E com certeza futuramente lamentarei muito por ter tido a razão.

Nessa madrugada, por volta de cinco ou cinco e meia da manhã, ouvimos tiros. Desde que cheguei aqui, há mais de três dias, não acontecia algo assim. Foram dos dois lados. Do lado da entrada e da parte de trás onde fica a estrada de terra que leva para a zona rural da cidade. A parte de trás fica a menos de duzentos metros de onde estou. Então foram totalmente impactantes os tiros que ouvi. A agitação no meio dos militares era intensa. Rapidamente peguei o radio que havia ganhado do meu irmão. É um rádio usado na comunicação entre os militares. Quando coloco os fones de ouvido e fico na minha, no meu canto, eu ouço todas as conversas entre eles. Desde coisas sérias até bobeiras. Meu irmão me deu esse radio escondido e disse que eu não poderia deixar ninguém ver. Caso encontrassem, ele não saberia de nada. Mas com certeza eu não o entregaria. Por falar no rádio, sempre era citado o nome de um determinado militar. Major Almeida. Sempre era Major Almeida pra lá, Major Almeida pra cá. Major Almeida mandou isso, Major Almeida mandou aquilo. Major Almeida não vai gostar, Major Almeida tem tudo no controle. Quase em todas as conversas os militares citavam o bendito Major Almeida. Certa hora eu o ouvi falando no rádio. Deu instruções para uma tropa se mover do portão principal para o alto do morro, na rua. Ele tinha uma voz grave e pesada, como alguém bem severo e carrancudo.

Naquela hora pude ouvir tudo o que estavam conversando. Primeiro foi uma equipe que estava no centro de Taubaté. Eram cerca de dez militares que estavam encurralados na igreja da Praça Dom Epaminondas. Depois de quinze minutos começou um tiroteio no radio e minutos depois cessou. Ou não havia mais em quem atirar, ou não havia mais atirador. Era aterrorizante. Depois foi a vez da equipe “Alfa” que faz a guarda no topo da rua que vai para o quartel.  Veja bem, para se chegar ao quartel de Taubaté, você segue uma enorme avenida. Entra na estrada dos Remédios e desce um morro gigantesco até se aproximar da entrada principal. O PP como eles chamam. Portão Principal. No topo do morro havia uma equipe que fazia a segurança inicial. Eles estavam relatando no radio a aproximação de cerca de vinte “monstros”. Era como eles chamavam. Foi então que o tiroteio começou, após o comandante liberar o “abrir fogo”. Dava para ouvir de onde eu estava e por sinal era muito longe. Pouco depois começaram os tiros próximos. Os militares viram a aproximação de duas criaturas pela estrada de terra e abriram fogo. Isso foi repreendido pelo comandante mais tarde, pois para ele duas criaturas seriam fáceis de matar com golpes e não com tiros. Depois disso ninguém mais dormiu. Meu irmão, que ia pra lá e pra cá, conseguiu dar um tempo e parar para conversar comigo.

Ele me contou o que eu já imaginava que poderia ter acontecido. Os militares que foram encurralados na igreja caíram. A equipe “alfa” conseguiu deter as vinte criaturas que se aproximavam. A segurança no topo do morro foi reforçada com mais dez militares. E na parte da estrada de terra colocaram mais quatro militares, juntos com os outros três que sempre ficavam ali. Ele também disse que vai deixar nosso plano pronto para ser executado. Agora ele também teme que alguma coisa possa acontecer.

Desde então as pessoas estão inquietas. O clima ficou pesado aqui. Ninguém quer informar nada. Estamos todos indo para a merda e os militares querem guardar segredo disso. A manhã chegou totalmente nublada e com nuvens bem pesadas no céu. Creio que vai vir um temporal.

Mais um acontecimento muito interessante aconteceu. Quando meu irmão veio até mim cerca de dois dias atrás, dizendo que novamente teria que ir com uma equipe de busca por sobreviventes na cidade, eu indiquei um local para ele. O condomínio Fortaleza. Onde estavam escondidos Rodrigo e Amanda. Os dias passaram e eu acabei por esquecer se meu irmão havia tido sucesso na missão. Vê-lo voltar vivo já era um alivio total para mim. Cada vez que ele tinha que sair eu ficava totalmente preocupado e apreensivo. Coisa de irmão mais velho. Foi então que ele comentou comigo que outra equipe acabou indo até o condomínio e que lá encontraram dois jovens sobreviventes.

– Os trouxeram para cá? – perguntei.
– Sim. – respondeu meu irmão. – A moça está passando por alguns exames, pois estava com muitos hematomas no corpo. Já o rapaz...
– Já o rapaz o que? – perguntei aflito.
– O rapaz está preso.
– Preso?
– Sim. Preso. Ele tentou agredir dois militares e atirou contra um deles. – os relatos do meu irmão eram impressionantes. – Sorte o rapaz ser ruim de mira. Foi pego por dois militares antes de disparar outro tiro. Agora está na prisão que temos aqui. Lá no QG. (Quartel General).
– Mas ele é menor de idade. Não pode ficar preso. – indaguei.
– As coisas não são mais como antigamente, Gabriel. – disse meu irmão. – O rapaz é o menor dos problemas que temos aqui. Qualquer pessoa maior de idade pode libertá-lo se prometer colocar o rapaz na linha. Mas espero que você não vá fazer isso. Se esse rapaz fez o que você me contou que ele fez, eu nem olharia na cara dele.
– Não vou libertar um cara que tentou me matar. – comentei. – Mas temos que entender que tudo isso é fruto de um trauma recente. Tenho dó dele.
– Tenha dó a distancia, Gabriel. – disse meu irmão. – Preciso ir agora. Arrumei mais algumas pessoas para nosso plano. Mais tarde a gente conversa. Hoje à noite estarei de guarda onde você está dormindo. Abraço.

Abracei meu irmão e ele partiu. Nosso plano era arriscado. Talvez nem chegue a ser executado. Para o bem de todos é claro. Vou desligar o notebook. Preciso conversar com meu irmão que acabou de entrar no posto de sentinela aqui no Hangar.

Porem, eu tenho que ficar atento. A qualquer momento pode ser a hora de agir.

Postado 09/08/2012 ás 20h01. Taubaté-SP

19° Registro - Sobreviventes - Parte 2 de 4


Três dias se passaram. Muitas coisas aconteceram. Estamos seguros? Sinceramente, não sei.

Eu cheguei a esquecer do blog. O notebook ficou largado, abandonado dentro do carro. Só hoje tive autorização para ir até a área externa do QG e pegar minhas coisas no carro. Vou continuar de onde parei para não me antecipar aos fatos...

Eu estava na casa da minha namorada tentando quebrar a cabeça e descobrir onde eles poderiam ter ido. Será que tentaram me procurar? Mas pra onde foram? Perguntas que cada vez que eu pensava nelas me faziam ficar pirado. O fato de pensar em ter perdido meu irmão e minha namorada acabava comigo. Deitei na cama da minha namorada sem forças nenhuma para continuar. Até ali tudo só estava dando errado. Fiquei ali deitado e não sei como, mas peguei no sono. Quando abri os olhos saltei da cama desesperado e percebi que já havia anoitecido. As criaturas ainda batiam no portão da casa. Já havia passado da meia noite. Procurei algumas velas e fósforos e encontrei. Eu sabia onde eles guardavam isso. Não queria chamar atenção com luzes acesas naquela hora. Encontrei algumas coisas na casa que eram comestíveis. Nada demais, já que levaram quase todos os alimentos. O tempo foi passando e eu precisava pensar em algo. Eu poderia sair pela casa vizinha e saltar na rua sem ser percebido. Mas também poderia ser surpreendido por algum zumbi dentro das outras casas. A única coisa que me restava era esperar amanhecer.

O dia seguinte amanheceu com uma leve chuva. Pouco a pouco as criaturas paravam de esmurrar o portão. Mas não saiam da frente dele. Peguei uma cadeira e dei uma olhada no quintal da casa vizinha. Havia duas criaturas vagando nos fundos, mas nenhuma na frente. Eu não poderia arriscar por ali, pois não tinha muro na frente e o portão poderia estar trancado. Foi então que tudo aconteceu.

Foi de repente. O som era impactante, ensurdecedor. Tiros, muitos tiros. Metralhadora talvez e com certeza outras armas de maior calibre. Estavam muito perto. Corri para frente da casa e vi as criaturas sendo abatidas uma a uma. Era uma matança digna de um filme de Hollywood. Assim que os tiros cessaram meu ouvido ficou com um chiado totalmente irritante. No meio desse chiado ouvi uma voz me chamando. Ao olhar vi meu irmão. Ele estava parado em frente ao portão estendendo a mão para mim. E ao seu lado militares. Militares? Sim. Militares. Uns vinte deles, todos equipados e fortemente armados.

– Precisamos sair daqui jovem! – gritou um militar para mim.
– Vá pegar suas coisas mano. Precisamos ir. – disse meu irmão.

Corri para a casa e peguei minhas armas. O pedaço de ferro e a pistola. Corri e saltei o muro, sendo ajudado pelos militares. Assim que toquei o chão eu corri e abracei meu irmão. Juntos nós choramos por um interminável minuto.

– Gustavo. Precisamos sair daqui. – gritou o militar para meu irmão. Na esquina eu vi as inúmeras viaturas. Eram umas oito.
– Onde você estava? O que está fazendo em Tremembé? – perguntei para meu irmão.
– É uma longa história. Mas vamos ter tempo de sobra pra eu contar. – ele respondeu me abraçando.

Era muito bom sentir seu abraço. Ele estava vivo. Obrigado Deus. Fomos levados para perto das viaturas. Perguntaram se eu queria ir na viatura ou ir dirigindo a caminhonete, acompanhando. Eu optei por ir acompanhando com a caminhonete. Não sei por quê. Achei melhor.

Assim que partimos de Tremembé, meu irmão, que estava comigo no carro, me explicou o que aconteceu com ele desde que tudo começou. Os relatos dele foram assustadores.

Tudo começou a ir para o inferno quando meu irmão ouviu o PDA (Plano de Defesa do Aquartelamento). O PDA é uma sirene de alerta que soa quando alguma coisa MUITO SÉRIA está acontecendo. Meu irmão estava na cama, mas não conseguia dormir. Já fazia quase dois dias que eu não atendia o celular. Ele estava muito preocupado. Ficar ali sem conseguir fazer alguma coisa por mim era angustiante. Ele ligava constantemente para minha namorada para saber se ela já havia conseguido falar comigo, mas nem ela havia conseguido. Os dois já estavam em pânico pensando no pior. Foi quando tentava mais uma vez me ligar que o PDA foi acionado. Cinco segundos depois que o PDA acordou todo mundo, os tiros começaram. Muitos tiros. Meu irmão seguiu o protocolo e, junto com os outros militares, ele entrou em formação de ataque. Assim que ele saiu do hangar de onde estava ele viu o inferno. Militares corriam de um lado para o outro atirando em outros militares. Ninguém conseguia entender o porquê daquilo tudo. Até que meu irmão viu um militar que não deveria estar ali. Era o Cabo Matias. O Cabo Matias não poderia estar ali, pois ele havia falecido cinco dias atrás, vitima da nova gripe. Antes de esboçar uma reação, meu irmão viu o Cabo Matias atacar um militar, mordendo sua perna. Em seguida outros três militares “estranhos” se aproximaram e também atacaram o militar abatido.

O capitão da tropa do meu irmão estava sem reação. Foi então que uma ordem vinda do rádio do capitão chocou a todos. “Atirem nos mortos”! “Atirem nos mortos”! “Abrir fogo”!

Meu irmão contou que pouco se lembra daquele momento. Quando tudo se acalmou ele só conseguia ver muitos e muito militares abatidos. Todos com um tiro na cabeça. O clima ali dentro era pesado. Muitos militares eram amigos. Ter perdido todos pela gripe já havia sido horrível. Vê-los voltar da morte e ter que mata-los novamente, era devastador.

“O que estava acontecendo”? Essa era a principal pergunta naquele momento. “Será que está acontecendo em toda a cidade”? Assim que isso passou pela cabeça do meu irmão, rapidamente então ele correu para seu alojamento e pegou o celular para me ligar. Nada. Meu celular, como nos últimos dois dias, só chamava. Um soldado entrou correndo no alojamento e disse que a Policia Militar estava solicitando apoio nas ruas, pois alguma coisa estranha estava acontecendo com as pessoas. O coração do meu irmão parou. Então ele ligou para minha namorada.

O que ele contou a seguir foi apavorante.

Ao atender ao telefone, minha namorada disse para meu irmão que tudo estava normal em Tremembé. Disse que havia uma movimentação estranha na rua, mas tudo estava tranquilo. Meu irmão a aconselhou a não sair de casa e trancar tudo. Ambos combinaram de ligar incessantemente pra mim. Uma hora ou outra eu iria atender.

Meu irmão estava se preparando para ir para as ruas, mas sua tropa foi solicitada para apoio interno. Sua angustia cresceu ainda mais. Ir para a rua seria uma oportunidade de tentar me encontrar no meu apartamento. Mas ele teria que ficar dentro do quartel.

As horas seguintes foram desesperadoras para meu irmão e todos ali dentro do quartel. Pelo rádio eles ouviam os relatos de mortos que voltaram à vida e estavam atacando os vivos. Mortos que tomavam inúmeros tiros e continuavam a andar. De minuto em minuto meu irmão tentava me ligar, mas eu não atendia. Minha namorada ligou para ele e relatou que coisas estranhas estavam acontecendo na rua. Pessoas gritando, fugindo e sendo atacadas por outras pessoas. Meu irmão pediu novamente que eles não saíssem da casa. Minha namorada relatou que o pai dela havia socorrido o vizinho que estava batendo desesperado no portão, pedindo ajuda. Ela disse também que já havia me ligado dezenas de vezes, mas eu não atendia. Começou a chorar e temeu pelo pior. Meu irmão tentou tranquiliza-la dizendo que tudo estava bem, que ele iria até meu apartamento verificar as coisas. Mas a verdade era que ele não poderia sair dali. Estava preso a ordem de ter que proteger o quartel.

As horas foram passando e cada vez menos as notícias de fora chegavam. Foi então que, nas primeiras horas da manhã, os militares começaram a retornar trazendo com eles sobreviventes. Eram muitos. Desolados, apavorados e em pânico. O quartel inteiro se mobilizou em auxiliar os sobreviventes que chegavam. A cada hora mais militares eram enviados para as ruas para buscar mais sobreviventes. Meu irmão ainda estava no trabalho interno. Foi quando a primeira oportunidade apareceu. Um tenente, muito amigo do meu irmão, aceitou em leva-lo numa busca por sobreviventes na região do meu apartamento. Era a chance que meu irmão estava aguardando.

No meio da ação dos militares, meu irmão entrou no prédio alegando ter visto um sobrevivente da janela de um dos apartamentos. Foi então que ele não me encontrou. Pela hora e o dia que ele disse ter acontecido isso, eu creio que no momento que meu irmão entrou no meu apartamento, eu estava tendo minha briga com Rodrigo, longe dali. Infelizmente meu irmão não pôde esperar para juntar as pontas e tentar entender onde eu estava.

Duas noites se passaram e novamente outra oportunidade apareceu. Meu irmão ingressou num grupo de militares que estavam encarregados de resgatar a família do comandante do exército naquele momento. A família do comandante morava na cidade de Tremembé. Era a oportunidade de ele checar se eu havia ido para a casa da minha namorada. Foi então que ele me contou algo que aliviou meu coração, em partes é claro. Na manhã do dia anterior, enquanto eu ajudava Amanda a vasculhar a casa vizinha no condomínio que Rodrigo morava, minha namorada ligou para meu irmão dizendo que ela e sua família estavam saindo da casa. Um tio da minha namorada, chamado José Carlos, havia chegado a casa dela e estava levando todos para sua fazenda, localizada na cidade de São Luiz do Paraitinga. Meu sogro, irmão de José Carlos, aceitou e todos foram.

Meu coração se aquietou. Ainda havia uma oportunidade para encontrar minha namorada. Caso ela e seus familiares tenham conseguido chegar até a fazenda. Deus, com certeza eles chegaram. Era só eu ir até lá. Meu irmão continuou seus relatos.

Assim que eles conseguiram resgatar os poucos sobreviventes da família do comandante, os militares estavam fazendo o trajeto de volta, que por incrível que pareça passava pela rua da casa da minha namorada. Assim que eles perceberam que a rua estava intransitada, eles fizeram o retorno para pegar outro caminho. Foi então que meu irmão reconheceu uma coisa. Uma caminhonete estacionada na esquina. A caminhonete do senhor Francisco. A mesma caminhonete que uma vez o senhor Francisco havia usado para levar meu irmão, eu e seus filhos para ver um jogo de futebol do time da cidade. Meu irmão implorou para o militar no comando para que ele voltasse e o deixasse averiguar a casa da minha namorada. O militar relutou, mas meu irmão foi insistente. Lembrou que o militar havia conseguido resgatar sua esposa, e que ele queria a chance de conseguir resgatar seu irmão. Ele conseguiu que os militares retornassem. Meu irmão saltou da viatura militar e correu na direção da casa da minha namorada. A movimentação das criaturas ali o fez entender que realmente havia alguém dentro da casa. Então ele me encontrou.

Dei mais um abraço em meu irmão. No meio do transito. Quase bati a caminhonete. Obrigado Deus. Uma etapa concluída. Agora só faltava minha namorada. Enquanto eu pensava nisso, nós seguimos as viaturas em direção a Base de Aviação do Exército em Taubaté, ou BAVEX. Seguimos as viaturas por caminhos que nunca vi na minha vida. Estradas de terra cercadas por matos em lugares totalmente desertos. Fiquei com dó dos carros normais que estavam juntos, pois as viaturas e a caminhonete eram preparadas para aquele tipo de terreno. Só sei que de alguma maneira chegamos até o quartel. Ali fui obrigado a deixar a caminhonete e seguir com os militares em direção ao portão principal.

Eu já havia estado aqui muitas vezes, pois tenho amigos que trabalham aqui. Ou tinha pelo menos. Dava para se perceber os sinais das coisas ruins que aconteceram aqui. Havia marcas de sangue por todos os lados. O local está lotado, são centenas, milhares de pessoas. Segundo a ultima contagem do exército havia ali mais de quatro mil pessoas. Pouco, comparado a uma cidade de mais de duzentos e setenta mil habitantes. Os hangares, que antes serviam para aeronaves, estão abarrotados de pessoas. A todo o momento uma aeronave parte daqui e outra chega, vinda de algum lugar. Ao olhar para os pilotos que chegam à gente percebe que as noticias não são boas. Parece que essa merda atingiu o país inteiro. E até o mundo. Estamos em crise total. Ontem a energia acabou de vez. O quartel agora mantem seis geradores de ultima geração. Presente do governo do estado. Até agora nenhum deles demonstrou sobrecarga, sendo que todos são desligados durante o dia.

Algo está me incomodando. Cheguei a expor minhas opiniões aqui, mas quem está no comando não deu à mínima. Comecei a agir por conta própria. Tenho o apoio do meu irmão e mais um grupo de pessoas. Não estou de brincadeira. É coisa séria...

Sinto algo estranho. Acho que alguma coisa vai acontecer.

Postado 08/08/2012 ás 20h01. Taubaté-SP

18° Registro - Sobreviventes - Parte 1 de 4

Estou vivo. Totalmente ferrado, mas vivo. Totalmente cansado, mas vivo.

Estou na casa da minha namorada. Não tenho boas notícias. Mas também não perdi as esperanças. Não tenho outra opção a não ser esperar a poeira abaixar para sair daqui. Não tenho sono nenhum. Vou escrever um pouco.

Quando você acha que tudo foi para o saco, fique tranquilo, pois tudo pode piorar.

Estou sozinho. Para ajudar, o numero de criaturas no portão aumentou.

Enfim... Ainda no condomínio, assim que entrei no carro, o liguei e sai. Não havia nenhuma criatura no trajeto de saída do condomínio, a não ser que estivessem dentro das casas. Ao passar pela portaria vi uma cena horrível. Um homem, ou o que restava dele. Do estomago pra baixo não restava mais nada dele. Isso me fez lembrar a criatura que encontrei na casa vizinha a do Rodrigo. Um homem com seus trinta e poucos anos, vestindo uma camisa preta e uma calça cinza toda rasgada e suja de sangue. Seu rosto estava todo ensanguentado e deformado, resultado das pancadas que dei. No braço estava a mordida. Uma ferida horrível e enorme. Seus olhos eram brancos e profundos. Suas mãos estavam sujas de sangue, talvez já tivesse matado alguém. Lembrei-me do berço. Merda.

Segui com o carro em direção à rua. Não vi ninguém nesse trajeto, a não ser um gol abandonado. Parei com o carro na esquina e observei. À direita eu vi alguns deles, caminhando para algum lugar. A esquerda estava livre. Infelizmente meu caminho era para a direita. Precisava encontrar outro trajeto, que felizmente já havia sido traçado como plano B. Segui pela esquerda e observei algumas casas com portões abertos e sangue por toda a parte. Realmente as pessoas foram surpreendidas na calada da noite. Não tiveram o que fazer a não ser correr e sobreviver. Muitas pelo jeito não sobreviveram. Logo em seguida saí numa estrada que ligava muitos bairros. A cena era desoladora. Carros abandonados por toda a parte. Batidos, capotados. E o pior de tudo, com gente morta dentro. No meio da estrada se via algumas criaturas vagando. Desviei de alguns carros e segui a estrada pela direita. A primeira parte do meu plano? Minha namorada com certeza. Eu precisava ter certeza do que havia acontecido com ela. Ela mora a cerca de vinte minutos de casa, uns quatro quilômetros, numa cidade vizinha a Taubaté, chamada Tremembé. Encontrei muitas criaturas durante o trajeto, mas que eram fáceis de evitar. As cenas se repetiam em quase todo o caminho. Carros e muitos carros. As pessoas com certeza tentaram fugir, mas o alvoroço foi o fim delas. As criaturas por todos os lados devem ter causados acidentes no transito. Vi carros de policia também. Com certeza receberam ligações e foram averiguar, sendo surpreendidos pelos zumbis. Pensei inúmeras vezes parar e pegar as armas dos policiais, mas era totalmente arriscado.

Agora surgiu outro mistério. Taubaté é uma cidade grande, com mais de duzentos e setenta mil habitantes. Quantas dessas pessoas viraram zumbis? Isso seria o inferno total. No caminho que fiz encontrei dezenas dessas criaturas, mas nem chegam aos pés do total de gente que vivia nessa cidade. Será que ainda serei surpreendido por milhares dessas criaturas num local só? Espero que não.

Continuei pela estrada até entrar em Tremembé. As cenas de terror se repetiam por toda a parte. Era difícil ficar olhando. Jurei ouvir sons que seriam tiros, mas não podia me dar ao luxo de ir averiguar. Foi então que me aproximei da rua da minha namorada. A visão congelou meu coração. A rua parecia ser a pior que eu vi em todo o trajeto até ali. Dezenas de carros em fila e batidos, capotados e alguns pegando fogo. E pra ajudar, dezenas de criaturas vagando por entre os carros. Algumas comiam o que parecia ser um corpo. Terror puro. Eram criaturas horríveis com amputações graves. Muitas sem braço, perna, com a barriga aberta, sem metade do rosto. Ao longe eu avistei a casa da minha namorada. O portão estava fechado e tudo parecia estar “tranquilo” por ali. Foi então que tive uma ideia. Comecei a buzinar na esquina. Iria atrair eles para mim e dar a volta no quarteirão.

Assim que percebi que os zumbis estavam caminhando até minha direção, dei a volta com o carro e sai para o outro lado do quarteirão. Não tinha como entrar de carro na rua, então minha ideia era mais perigosa ainda. Eu não podia partir sem saber o que havia acontecido. Precisava entrar naquela casa e ver com meus próprios olhos. Dei a volta no quarteirão e de longe vi que as criaturas estavam seguindo o carro, deixando a rua. Algumas criaturas insistiram em ficar, mas seriam fáceis de contornar. O perigo seria todas juntas.

Peguei o pedaço de ferro que tinha no carro e a arma. A outra arma eu havia deixado com Amanda e Rodrigo. Esperava não ter que usar nenhuma das duas opções. Percebi que outras criaturas se aproximavam do carro, então sai rapidamente e fechei a porta.

No caminho vi as cenas mais horríveis da minha vida. O cheiro de cadáveres já em fase avançada de decomposição era nauseabundo. Tive que correr com o nariz tampado por diversas vezes. Eram mortos de todos os tipos. Homens, mulheres e crianças. Crianças, pelo amor de Deus. Esquivei-me de três ou quatro criaturas que passaram a me seguir de longe. Incrível como se movem rápido quando percebem um “vivo” por perto. Cheguei ao portão da casa de minha namorada e vi o carro estacionado na garagem. Meu coração quase parou. Estava aberto e vazio. Tentei abrir o portão, mas estava trancado. Merda. Dois zumbis estavam a menos de dez metros de mim. Dei uma afastada e me empoleirei no muro. Com esforço subi e saltei para dentro da casa dela.

Tudo estava totalmente quieto.  As criaturas se aproximaram e começaram a forçar o portão. Ele tem as barras de ferro bem grossas, então não me preocupei em relação a isso. Porem o som que eles emitiam era aterrorizante. Aquilo iria me deixar louco. A casa da minha namorada tem dois corredores laterais. Pelo lado esquerdo tem a porta principal da casa e a porta do corredor. Pelo lado direito é livre. Os dois corredores saem no enorme quintal dos fundos. Chequei as duas portas do lado esquerdo e estavam trancadas. Isso me deu esperanças, sinal de que eles poderiam estar seguros. O carro estava totalmente vazio. A chave estava no contato, mas não tinha nada, como por exemplo, coisas preparadas para uma fuga. Segui pelo corredor direito e fiquei atento a qualquer coisa. Fora o som das criaturas no portão, eu não ouvia mais nada. Assim que virei o corredor e sai no quintal, meu coração quase saltou pela boca. Atrás da maquina de lavar roupas da minha sogra havia alguém, um corpo jogado. Eu só podia ver as pernas. Eram de um homem. Não tive escolha, preparei a arma. Depois do episodio da casa vizinha no condomínio eu havia destravado a bendita arma. Estava pronto para atirar. Mas e se fosse meu sogro, ou alguém conhecido? Eu seria capaz? Depois de pensar nisso, minhas mãos começaram a tremer. Lembrei-me das palavras de Rodrigo. Balancei a cabeça negativamente tentando esquecer aquelas palavras.

Aproximei-me e vi o corpo. Eu o conhecia. Era o vizinho do meu sogro. Carlos eu acho. Estava totalmente morto. Enfiado na cabeça dele havia um espeto de churrasco. Meu sogro é um churrasqueiro nato, e eu havia dado aquele jogo de espetos para ele no natal. Vejo que lhe foi útil. Definitivamente o vizinho havia se tornado um zumbi e tentado atacar alguém aqui dentro. Isso me fez gelar. Tomara que não tenha conseguido. A porta dos fundos estava aberta, o que me fez tremer ainda mais. Chamei pelo nome de minha namorada, que por sinal é Mirian. Não houve resposta. Entrei lentamente na casa olhando para todos os cantos. Assim que passei pela cozinha vi o que por algum instante me acalmou. Tudo estava revirado e vazio. Eles provavelmente se prepararam e fugiram. Não havia alimentos na casa. Entrei no quarto de minha namorada e também estava revirado. Roupas, entre outras coisas. Tudo. Fiquei feliz por saber que eles não haviam virados zumbis, mas preocupado.

Onde eles poderiam estar?

17° Registro - Despedidas


Abri meus olhos e percebi uma movimentação na cozinha. Era Amanda preparando um café.

– Que horas são? – perguntei.
– Um pouco mais de sete horas da manhã.

Me levantei e fui até o banheiro lavor o rosto. Ao voltar Amanda ainda estava na cozinha.

– E o Rodrigo?
– Ontem ele finalmente falou algo. – disse ela. – Me agradeceu por estar cuidando dele.
– E?
– Quer saber se ele falou de você?
– Por favor.
– Falou. Ele te culpa pela morte da mãe dele. Disse que você demorou muito para sair do prédio em que morava e vir pra cá. É verdade?
– Sim. – concordei. – É verdade. Mas eu tentei ser cauteloso. Tínhamos que estar preparados para sair. Eu também estou atrás de entes queridos. Meu irmão está em algum lugar dessa cidade do inferno. Isso se ele estiver vivo. E minha namorada... Minha namorada...
– Não precisa dizer mais nada Gabriel. Eu entendo. Porem, Rodrigo com certeza não irá com você.
– Eu já imaginava. – sussurrei. – E você?
– Não posso deixa-lo assim. – disse ela. – Encontrar ele nessa situação remexeu com um sentimento a muito adormecido.
– Cuide dele Amanda. Eu preciso partir. Preciso encontrar os meus.
– Que você tenha mais sorte do que Rodrigo e eu. – disse Amanda. – Posso parecer mais forte, mas ainda não aceitei a morte do meu pai. Estou despedaçada por dentro. Cuidar do Rodrigo está servindo pra manter minha cabeça ocupada.
– Concordo. Porem, não posso deixar vocês nessa situação. – disse eu.
– O que está pensando em fazer? – perguntou Amanda curiosa.
– Estava pensando em olhar as casas vizinhas e trazer alguns mantimentos e objetos necessários pra cá. Vocês não podem se esquecer de que a área de lazer está infestada dessas criaturas. Caso esses zumbis acabem saindo do condomínio, irão acabar passando por aqui.
– Eu vou com você olhar as casas vizinhas. – disse Amanda.
– Então vamos planejar tudo.

***

Temos um plano. Na teoria parece ser fácil de executar. Na prática, quero ver.

Assim que Amanda levou o café para Rodrigo e voltou, eu fui para os fundos da casa e olhei pela janela. Aquela parte do condomínio estava vazia. A portaria estava toda quebrada, o portão totalmente aberto e amassado. Não havia nenhuma criatura a vista. Nos reunimos na sala e decidimos o que fazer. Amanda teve uma ideia, mas foi rapidamente descartada. Era um plano bom, mas precisaríamos ter um caminhão. A ideia era vasculhar todas as casas a procura de alimentos e coisas que pudessem ser trazidas pra cá. Eu disse que não teríamos onde levar tudo isso. Então decidimos em reunir as coisas da casa do Rodrigo, da Amanda e da casa vizinha. Sim, iriamos roubar a casa vizinha.

Assim que saímos correndo pela rua, percebemos que a porta estava aberta, o que já era um mau sinal. Amanda e eu entramos lentamente. Paramos na porta e fizemos silencio absoluto. Não ouvimos nada. Na entrada as coisas já começaram a ficar feias. Pegadas de sangue, nos dois sentidos, entrando e saindo da casa. A sala estava toda desorganizada. O sofá estava manchado de sangue e virado. A TV quebrada e jogada no chão. Fomos para a cozinha e começamos a vasculhar tudo. Pegamos tudo que poderíamos levar. Encontramos algo que “alegrou” nosso dia. Um pequeno botijão a gás. Pelo peso está cheio. O dono da casa deveria ser um pescador. Esses pequenos botijões servem para cozinhar coisas em acampamentos e pescarias. Você abre a pequena válvula em cima e usa um fósforo. Maravilha! Sei disso porque meu pai era pescador. Meu pai, minha mãe. Fico feliz deles não estarem entre nós. Não desejaria esse sofrimento para eles. Enfim. Com esse botijão eu poderei levar comida de verdade. Então começamos a pegar arroz, feijão, macarrão. Foi então que tudo aconteceu. Enquanto mexíamos nos armários, ouvimos um barulho muito forte. Tinha vindo do andar de cima. Não precisaríamos ver o que era, mas o ser humano é um curioso desgraçado. Eu estava armado, afinal, estava “seguro”. Como eu estava enganado. Subimos lentamente as escadas, mas não ouvimos mais nada. Em cima, um corredor virava para a esquerda onde havia quatro portas. Com certeza os quartos e banheiros. Minha perna tremia, meu coração estava totalmente acelerado. Com a arma na mão eu avancei. Amanda atrás de mim, segurando meu braço. A primeira porta estava fechada, decidi que não abriria. A segunda porta estava um pouco aberta. Amanda estava com um pedaço de ferro. Ela abriu lentamente uma das portas, e foi quando nosso mundo desmoronou. Era um quarto de criança. Um maldito quarto de criança. Todo pintado de azul, com bichinhos na parede. Um berço. Droga. Eu nem queria imaginar o que tinha dentro do berço. Foi então que ele surgiu. Do nada uma enorme sombra surgiu e caiu sobre Amanda. Era um “deles”. Um zumbi. O homem, com uma camisa preta e uma calça cinza toda rasgada saltou sobre Amanda. Num ato de total adrenalina misturada com desespero eu atirei. Mas merda! A arma não funcionou! Não pensei duas vezes e tomei o pedaço de ferro das mãos de Amanda, que lutava para afastar a boca do zumbi de perto de seu rosto. Com um chute eu fiz o homem cair ao lado dela. Com um golpe certeiro eu desmontei o coitado. O ferro bateu bem na testa do pobre homem e abriu um considerável buraco. Mas não parei ai, pois ele ainda estava “vivo”. Com outros golpes eu fui abrindo a maldita cabeça daquele ser. Ele já estava morto e Amanda tentava segurar minha mão para eu parar. Mas eu não queria parar, eu queria descontar toda minha raiva, meu desespero, meu medo. Enquanto ainda batia no já morto homem eu comecei a chorar. Sentei no chão e desandei a chorar. Amanda se virou e também começou a chorar. Depois que me levantei, fiquei olhando para aquele homem.

Saímos da casa com as coisas. Agora estou pronto para partir. Tomei um banho e me alimentei bem. Não sei quando será minha próxima “boa refeição”. Mas faltava uma coisa para fazer. Despedir-me do Rodrigo.

Amanda insistiu para eu não fazer isso, mas eu precisava fazer.

Subi as escadas. A porta do quarto da mãe de Rodrigo estava fechada. O cheio podre ali em cima era bem mais intenso do que embaixo. A porta do quarto de Rodrigo estava aberta. Ao me aproximar encontrei Rodrigo lendo um livro. Ele olhou pra mim e imediatamente voltou a ler o livro. Aparentava estar melhor. A ferida na cabeça causada pela batida no criado mudo era pequena.

– Vim me despedir. – finalmente falei. Ele não abriu a boca. – Perdão por qualquer coisa Rodrigo. Sei que nenhuma palavra que eu disser mudará alguma coisa.
– Então cala a boca. – disse ele ainda com os olhos no livro.
– Entendo. – sussurrei. – Adeus cara. Adeus.
– Desejo que você encontre o mesmo sofrimento que eu encontrei aqui. – disse Rodrigo. Ao me virar percebi que lágrimas escorriam enquanto ele falava. – Desejo que você encontre sua namorada morta, seu irmão morto, todos mortos e devorados por essas criaturas.
– Adeus Rodrigo. – Sai do quarto.

Meu sangue havia fervido por alguns segundos, mas me controlei. Rodrigo não sabia o que estava falando. Ele ainda estava alterado pelo fato de ter atirado na própria mãe. Não o culpo. Eu poderia ter feito e falado as mesmas coisas.

– Assim que eu for embora, peça para Rodrigo te ajudar com as coisas.
– Peço sim. Boa sorte! – disse ela me dando um abraço. – Obrigado por salvar minha vida.
– Por nada.

Agora estou preparado para sair. Já coloquei na caminhonete as coisas que eu separei pra mim. Ainda vou continuar levando o notebook. Vou aproveitar cada minuto que resta até o sinal da internet ir para o saco de vez. Estou partindo para a casa da minha namorada.

E lá vamos nós outra vez...

Postado 05/08/2012 ás 13h11. Taubaté-SP