Quando
olhei para aqueles olhos cinzas e sem vida, tropecei nas minhas próprias pernas
e cai sentado no cão. Uma rápida olhada e vi que no lugar da bochecha esquerda
do senhor Francisco havia um buraco que mostrava toda a sua arcada dentária
podre e amarela. O sangue escorria pelo canto da boca e manchava seu agasalho
de moletom azul. Ele estava descalço e usava uma calça jeans clara.
Quando
ameacei me levantar, o senhor Francisco saltou sobre mim e me atacou. Segurei
seu pescoço com a mão direita e com a esquerda fiz força pra tentar jogá-lo de
lado. Suas mãos tentavam tocar meu rosto, mas eu levava a cabeça pra trás. Não
queria ser tocado por aquelas mãos imundas e sujas de sangue. Comecei a gritar
e pedir ajuda, mas no fundo eu desconfiava que ninguém poderia me ouvir.
Apoiei
o joelho esquerdo na barriga daquele senhor e fiz força, tentando de qualquer
jeito jogar ele pra trás. O desgraçado começou a babar sangue na minha calça. O
maldito parecia não perder as forças, enquanto as minhas já estavam começando a
me deixar. Meu braço já estava ficando dolorido e senti que ele iria falhar a
qualquer minuto. Sem pensar eu dei um soco de esquerda bem no rosto do velho,
que pareceu não sentir nada. Mais um soco. Outro soco. Minha mão começou a
doer. Comecei a entrar em desespero e a gritar por ajuda. Foi quando vi que a
velha senhora Fátima estava se arrastando na minha direção. O desespero começou
a tomar conta de mim. Lágrimas caíam do meu rosto. Deis mais três socos no
velho e perdi a força na mão, que já estava inchada. A velha veio rastejando
lentamente em minha direção, tentando agarrar o chão para se arrastar mais
rápido.
Num
ato de desespero olhei para os lados e vi um pequeno vaso de flor caído em cima
de um tapete marrom coberto de sangue seco. Fiz um esforço e apoiei os dois
joelhos no peito do senhor Francisco. Tomei folego e com toda a força que me
restava eu usei os joelhos pra afastar aquele monstro que tentava me atacar.
Rapidamente soltei a mão do pescoço do velho e peguei o vaso de flor. Dei um
golpe certeiro bem na orelha esquerda do velho que desabou do meu lado. Assim
que tentei tirar o corpo dele de cima da minha perna, fui surpreendido pela
velha que saltou sobre mim e abocanhou meu pé. Com o pé livre eu dei dois
chutes no rosto dela, fazendo abrir ainda mais a ferida que ela tinha na testa.
Ela se afastou com metade do cadarço do meu tênis. Me levantei assustado e
rolei por sobre o sofá e me afastei de costas, não perdendo aquelas duas
criaturas de vista.
A
velha já estava levantando e caminhando e minha direção. O senhor Francisco
estava se apoiando no braço do sofá e fazia um horrível esforço para se colocar
de pé. Estava processando minha mente a mil por hora. Eu sabia o que eram
aquelas coisas, mas não queria acreditar. Não queria acreditar que tudo aquilo
era possível de acontecer. Mas eu tinha que aceitar. Ou era o que eu estava
imaginando que era, ou algo muito sinistro estava acontecendo com eles.
A
adrenalina que eu sentia naquele momento fez tudo o que eu fiz a seguir
acontecer por extinto de sobrevivência.
Dei
um passo pra trás e não vi uma cadeira caída no chão e tropecei. Cai no chão próximo
a sacada do apartamento e bati a cabeça na parede. Fiquei tonto e desnorteado
imediatamente. Senti o mundo girar e uma pontada aguda na nuca. Eu estava vendo
tudo embaçado. Coloquei a mão na cabeça e tentei, em vão, me levantar. A velha
estava se aproximando de mim. Comecei a gritar e a chorar. Sem entender o
porquê eu estava fazendo aquilo, eu peguei uma das pernas da cadeira que havia
se quebrado com a minha queda. A velha se lançou contra mim, e eu, colocando a
madeira na direção da cabeça da velha, deixei ela se jogar, fazendo a madeira
cravar dentro da boca dela e atravessar sua cabeça.
A
cena foi nojenta. Sangue escorreu pela madeira e caíram no meu colo. A senhora
Fátima estava imóvel. Joguei o corpo dela de lado e rapidamente tirei a camisa,
com nojo. Essa atitude quase custou minha vida, pois eu não vi o senhor
Francisco se aproximando...
Foi
então que eu ouvi um barulho seco seguido de um som de madeira quebrando...
Ao
olhar para o lado assustado eu vi o velho se espatifando de lado e batendo o
rosto na parede, formando uma pasta vermelha onde antes estava o seu nariz.
Olhei mais para o lado e vi um vulto com o que restava de uma cadeira nas mãos.
Esse vulto pegou um pedaço de madeira e surpreendentemente também atravessou a
cabeça do velho com um golpe forte, fazendo jorrar sangue por toda a parede e
no sofá ao lado dele.
–
Você está bem parceiro?
–
Rodrigo?
–
Graças a Deus! – gritou Rodrigo se aproximando de mim.
– O
que está acontecendo cara? O que está acontecendo?
Naquele
momento eu estava perdendo minhas forças. A adrenalina estava passando.
–
Melhor irmos para o seu apartamento. – disse Rodrigo me ajudando a levantar. –
A coisa está feia brother. Muito feia.
***
Já no
meu apartamento Rodrigo me fez um relato de todo o momento de terror que ele
passou dentro do apartamento do senhor Francisco. Tudo o que ele contou fez a
minha espinha se arrepiar e gelar meu coração.
Ele
contou que tudo começou na madrugada do dia 31, há dois dias. Já era tarde
quando ele acordou (estava dormindo na sala) ouvindo barulhos de tiros e
viaturas militares e policiais passando desesperadamente na rua. Correu pra
sacada e viu uma correria horrível na rua. Carros comuns também saiam em
disparada junto com os carros da policia e do exército. No prédio que moramos
ele contou que ouvia gritaria. Muita gritaria. O senhor Francisco e seus dois
filhos vieram e também começaram a observar tudo o que estava acontecendo.
Quando todos ameaçaram correr para a rua para ver o que estava acontecendo,
ocorreu o pior. Um barulho vindo do quarto lacrado, onde estava o corpo da
velha senhora Fátima, assustou a todos. O senhor Francisco correu rapidamente,
colocou uma máscara daquelas que vendem em farmácia e entrou no quarto.
Rodrigo
começou a tremer ao me contar isso...
Ele
disse que de longe viu o corpo da velha estendido no chão. Francisco ficou ali
parado olhando a cena por cerca de quinze ou vinte segundos, quando viu a velha
mexer os braços. (Meu coração disparou ao ouvir esses relatos).
Ele
contou que o senhor Francisco correu imediatamente para o corpo da velha. Quando
os filhos dele também se aproximaram, aconteceu o inesperado. A velha agarrou
os ombros do senhor Francisco e num bote certeiro e mortal mordeu o rosto do
velho. O grito desesperado do senhor Francisco fez Rodrigo entrar em pânico. Os filhos do velho puxaram o pai, que
agonizava de dor, e o tiraram do quarto, trancando a porta pelo lado de fora.
Os dois rapazes pareciam entender lá no fundo do subconsciente que algo estava
errado com a mãe deles, que estava totalmente morta poucos minutos atrás. O
velho, sangrando muito, se debateu por todo o apartamento, caindo em cima da
mesa, cadeiras, manchando de sangue as paredes até cair no chão.
O
mais triste aconteceu minutos depois. O velho não suportou o intenso
sangramento e faleceu nos braços dos filhos.
Os
dois rapazes, já homens maduros, um com trinte e oito anos de idade e o outro
com quarenta e um, começaram a chorar como crianças, enquanto a velha Fátima
socava feito louca a porta do quarto.
Rodrigo
ficou insistindo para os rapazes que algo estava de errado e que eles
precisavam sair dali, enquanto ao longe o barulho de policia, ambulância,
tiros e batidas de carro eram intensos. No momento em que Rodrigo falou que
iria me chamar no meu apartamento, os dois rapazes resolverem, loucamente, ver
o que estava acontecendo com a mãe deles. Rodrigo achou loucura e disse não
ficaria mais nem um minuto no apartamento.
Enquanto
ele arrumava as coisas dele pra sair, os dois rapazes foram lentamente até a
porta do quarto, um com uma faca na mão, e o outro com um cabo de vassoura.
Rodrigo se aproximou para dizer que estava saindo quando naquele exato
momento os rapazes abriram a porta.
A
cena da velha dando o bote em cima do filho mais próximo foi horrível para
Rodrigo. A velha abocanhou o braço do rapaz, que gritou desesperadamente de
dor, tentando acertar o cabo de vassoura na mãe. O outro filho, sem pensar duas
vezes, esfaqueou as costas da mãe, que não demonstrou reação alguma. Rodrigo se
desesperou e começou a correr pelo corredor, quando deu de cara com o senhor
Francisco em pé, olhando para ele. Com um gemido seco, o velho partiu para cima
de Rodrigo, que voltou o corredor correndo. Antes de entrar na cozinha ele viu
os rapazes derrubando a mãe e tentando acertá-la novamente com o cabo de
vassoura. Atrás dele o senhor Francisco armou o bote, mas Rodrigo fechou a
porta da cozinha no momento certo.
Ali
ele ficou. Depois de muito barulho, Rodrigo percebeu que os rapazes estavam
vivos, mas que fugiram do apartamento, o deixando sozinho. Por sorte, disse
ele, os velhos não notaram a presença dele dentro da cozinha. Então ele ali
ficou. Não morreu de fome e sede porque estava num ótimo lugar para ficar.
Os
dias que se seguiram foram um tormento para o pobre rapaz. Pensando na mãe sozinha
em sua casa, ele caiu em prantos e quase morreu de desidratação de tanto
chorar. E se ela tivesse morrido? E se ela tivesse se transformado nessa coisa
horrorosa? E se ela tivesse sido atacada por um deles?
Ali
no seu abrigo, Rodrigo viveu dias de cão. Sofreu como ninguém. Ao longe ouvia os
tiros, as sirenes, os gritos e a correria. Sabia que se quisesse sair dali
teria que ter coragem e encarar as criaturas do lado de fora. Foi quando logo no início daquela manhã ouviu
alguém chamar pelo seu nome. Tomou coragem para se levantar, pois estava largado no
chão da cozinha. Ouviu barulhos de passos e gemidos. Segundos depois ele ouviu
alguém gritando por socorro. Hesitou. Pensou duas vezes. Ouviu um barulho de
alguém batendo na parede. Mais gemidos e gritos. Tomou coragem e abriu a porta
da cozinha.
Ele
me viu estirado no chão. Viu a velha morta ao meu lado e o velho partindo para
cima de mim. Foi então que pegou um pedaço de madeira no chão e me salvou. Devo
a vida a essa rapaz. Muito novo, mas muito corajoso.
Agora
estamos no meu apartamento. Insisti pra ele descansar um pouco enquanto
pensamos no nosso plano de fuga. É óbvio que não podemos ficar aqui. Ele
precisa encontrar sua mãe. Eu preciso encontrar minha namorada e meu irmão.
E
vamos fazer de tudo para isso acontecer...
Postado 02/08/2012 ás 20h29.
Taubaté-SP
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