22° Registro - A Queda da Zona Segura - Parte 1 de 2


O DIÁRIO

Foi uma tragédia. Infelizmente eu estava certo. Que porcaria. Que droga de vida!

Estou totalmente abalado. Totalmente em pânico. Faz poucos minutos que consegui parar de tremer e pensei em escrever algo aqui. Eu já tinha desanimado. Queria largar tudo. Esse inferno está nos consumindo aos poucos. Estamos morrendo aos poucos. Morrendo psicologicamente. Estamos cansados, com fome. Vivendo em condições precárias. Dormimos no chão. Isso quando conseguimos dormir. Qualquer ruído, o menor que seja já nos deixa apavorados. Não vivemos para sermos caçados. Nunca estaremos preparados para essa “nova vida”. Droga.

Meu blog já era. Perdi meu notebook na confusão. Quem me encorajou a pegar um caderno e escrever foi meu irmão. Não sei se vale a pena. Mas por enquanto está sendo uma terapia escrever nesse caderno. Vou leva-lo comigo. Vou escrever tudo. Talvez alguém encontre isso aqui um dia e saiba que eu e os meus lutamos para sobreviver. E lutamos bravamente.

***

Ver um caos generalizado é totalmente perturbador. A dor, o sofrimento, o desespero, o pânico, o medo, tudo a flor da pele. Pessoas correndo, gritando, chorando, morrendo. E para piorar tudo, as criaturas. Mortos vivos sedentos de carne e sangue com um único objetivo: Matar. Nem a pessoa mais louca da terra se imaginaria numa situação dessas. Foi um massacre.

Eu ainda escrevia no blog quando os tiros começaram. Um, dois, dez, setenta, cem. Muitos tiros. Metralhadoras, pistolas e outras armas que eu não conheço. Começou a correria entre os militares. Nesse instante as pessoas já começaram a se desesperar. Crianças começaram a chorar. Alguns começaram a passar mal. Meu irmão estava ao meu lado. A sua cara parecia de surpresa, com certeza assustado. Ele não fazia ideia do que estava acontecendo do lado de fora do quartel. Ele ficou em pé e pediu para eu tentar ouvir algo no rádio. Peguei o rádio e tentei ouvir algo. O som de tiros era ensurdecedor. Mas uma coisa eu consegui ouvir;

– São muitos! – gritou um soldado.
– Recuem! – gritou outro.

Assim que ele olhou pra mim e viu minha cara de assustado o alarme soou. Um ensurdecedor alarme. PDA. Plano de defesa do aquartelamento. Então os militares começaram a entrar em forma de combate. Aguardando uma guerra que estava prestes a começar. Gustavo foi sair correndo e eu segurei seu braço.

– Chegou a hora. Não temos o que fazer. – falei para ele.

Ele olhou para os militares em forma e pensou. Talvez estivesse mais assustado do que eu. Pobre irmão. Seu uniforme militar às vezes me fazia esquecer que ele ainda era um garoto de vinte anos.

– Vamos. – ele disse.

Enquanto corríamos em direção a Amanda que já estava em pânico, Gustavo ouviu no rádio que os militares já haviam recuado para o portão principal. Foi então que ouvimos algo mais. Uma explosão. Olhei para ele que me disse simples e curto;

– Granada.

Carlos. O Sargento que fazia parte do nosso plano se aproximou. Trocou algumas palavras com meu irmão e saiu correndo. Foi dar continuidade ao nosso plano. Me aproximei do meu irmão e imediatamente ele percebeu que estávamos em problemas. Ele correu para avisar o resto do pessoal que havia se juntado a nós.

O inferno estava se aproximando. Era hora de fugir.

***

“Desespero é a aflição em se ver sem esperanças”.

Não me recordo se li ou ouvi essa frase uma vez. Só sei que ela retrata totalmente o inferno que nós estávamos vivendo naquele quartel.

Cerca de dez minutos depois que meu irmão ouviu no rádio que os soldados haviam recuado para o portão principal, eu ouvi outro aviso. “Eles haviam chegado”! Sim, as criaturas já estavam no portão principal. É um portão de grade enorme, mas não é resistente. Nada resistente. Os tiros e as explosões, causadas pelas granadas, continuavam. Naquele momento eu já estava preparado para fugir, juntamente com meu irmão, Amanda e mais quatro pessoas que fizemos amizade. Carlos, o Sargento com seus quarenta e poucos anos. Sua esposa Sofia, também com essa faixa de idade. E dois rapazes, primos, André e Ricardo. Os dois deveriam ter uns vinte e poucos anos. Estávamos esperando Carlos, que por sinal estava demorando.

Foi então que vimos à correria. Eu sinceramente já esperava por isso. As pessoas que estavam próximas ao portão principal correram para os hangares mais distantes, no caso o nosso, que era um dos maiores. A rua estava lotada de pessoas correndo, gritando, tropeçando uma nas outras. Os soldados que faziam uma “ultima linha de defesa” ficaram sem reação. Abriram caminho para a multidão desesperada. Enquanto isso a chuva apertava, deixando a situação ainda mais horrível.

Ouvi no rádio que o numero de soldados mortos já era grande. Então vimos ao longe o inferno. Soldados recuavam com rapidez. Através de viaturas, caminhões ou correndo. Quem estava a pé continuava atirando ou jogando granada. Mesmo com a forte chuva nós os enxergamos. Dezenas, centenas e talvez milhares deles. Muitos, mas muitos mesmo. Homens, mulheres, crianças. Jovens, velhos. Brancos, negros. De todos os tipos. Muitos pareciam seriamente mutilados, com partes do corpo seriamente feridas e expostas. Na face o terror. A vontade de matar. O anseio em sentir o gosto do sangue correndo pela garganta. Eram muitos. Estávamos acabados.

Naquele momento Carlos se aproximou e me deu uma mochila. Estava totalmente pesada. Eu sabia o que havia ali dentro. Olhei novamente pra ver se estávamos todos reunidos. E então corremos. Sim, corremos.

– Mas e o Rodrigo? – gritou Amanda enquanto meu irmão a puxava pelo braço.
– Sinto muito Amanda. Não temos tempo para isso! – eu gritei. – Todo mundo que estava lá na frente correu para cá. Rodrigo deve estar entre eles. Vamos.

Amanda não reagiu. Sabia que seria suicídio não fugir dali. Olhou para trás uma ultima vez. E deixou ser levada.

Saímos da frente do hangar e fomos em direção à estrada de terra que passava por detrás dele. Aquele era um bom plano, se não fosse por uma simples coisa. Muitos acabaram nos seguindo. Ainda bem que meu irmão e eu pensamos que aquilo realmente poderia acontecer. Muitas pessoas correram atrás de nós, achando que também estávamos fugindo dali para sobreviver. Isso era verdade, mas tínhamos um plano já montado. Assim que começamos a nos afastar do hangar a escuridão começou a tomar conta da estrada de terra. Carlos, meu irmão e eu pegamos três lanternas que já havíamos trazido para isso. Carlos, que conhecia muito bem o lugar, foi nos guiando. Em certo momento ele desligou sua lanterna e pediu para meu irmão e eu desligarmos a nossa. Então nos guiou para um caminho a esquerda, para dentro da mata. Dentre os muitos que nos seguiam, alguns também possuíam lanterna. A forte chuva atrapalhava um pouco a visão, então eles não viram que havíamos saído da estrada. Seguiram pela direita, continuando a estrada e foram embora.

– Nosso caminho não é pela estrada. Não nesse trecho. – disse Carlos. – Vamos seguir pela mata e com certeza vamos chegar onde temos que chegar. – concluiu ele, já saindo andando.

Nós o seguimos mata adentro. Não podíamos acender as lanternas, senão seriamos vistos. Então andamos em fila indiana, cada um com a mão no ombro do outro. Carlos foi guiando. Ao longe ainda ouvíamos tiros, mas dessa vez eram em menor quantidade. A gritaria continuava. Os gritos das pobres pessoas perecendo nas mãos daquelas criaturas. Tínhamos que sair dali rapidamente.

Chegamos então a um ponto que saímos novamente na estrada.

– Estamos bem à frente da multidão. – disse Carlos.

Continuamos pela estrada e chegamos a um ponto que fazia parte do nosso plano. Lá estava ela. A viatura militar que usaríamos para fugir. Assim que nos aproximamos do carro, eles apareceram. Quatro homens, saindo de não sei onde.

– Vocês estão fugindo? Precisamos de ajuda. Podemos ir com vocês? – perguntou um dos rapazes. No mesmo instante eu reconheci a voz.
– Mateus? – perguntei.
– Gabriel? – perguntou o rapaz me reconhecendo.

Mateus era um amigo. Havia trabalhado comigo ano passado. Desde sua saída do trabalho eu não tinha contato com ele. Não sabia que ele estava refugiado no quartel. O reencontro seria motivo de celebração, não fosse o inferno que estávamos vivendo. Mas algo pior ainda aconteceu.

Eu sabia que não teria como ajudar todos que estavam com Mateus. A viatura estava equipada com coisas que Carlos foi colocando ao longo do tempo que bolamos o plano. Só tinha lugar para os que estavam conosco. Mais um no máximo.

– Sinto muito. – disse Carlos. – A viatura está lotada.
– Por favor, Gabriel? – pediu Mateus.

Eu achei que os rapazes que estavam com ele também iriam se desesperar e começar a implorar por ajuda. Mas algo mais estranho aconteceu. Um deles, o mais velho, deu um passo à frente. Segurava na mão uma arma. Acho que era um revolver 38. Ele jogou a luz de sua lanterna no rosto de Carlos e falou;

– Então vamos ter que tirar essa viatura de vocês.

Escrito 13/08/2012 ás 10h05. Taubaté-SP

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