O DIÁRIO
Foi uma tragédia. Infelizmente eu estava certo. Que porcaria. Que
droga de vida!
Estou totalmente abalado. Totalmente em pânico. Faz poucos minutos
que consegui parar de tremer e pensei em escrever algo aqui. Eu já tinha
desanimado. Queria largar tudo. Esse inferno está nos consumindo aos poucos.
Estamos morrendo aos poucos. Morrendo psicologicamente. Estamos cansados, com
fome. Vivendo em condições precárias. Dormimos no chão. Isso quando conseguimos
dormir. Qualquer ruído, o menor que seja já nos deixa apavorados. Não vivemos
para sermos caçados. Nunca estaremos preparados para essa “nova vida”. Droga.
Meu blog já era. Perdi meu notebook na confusão. Quem me encorajou
a pegar um caderno e escrever foi meu irmão. Não sei se vale a pena. Mas por
enquanto está sendo uma terapia escrever nesse caderno. Vou leva-lo comigo. Vou
escrever tudo. Talvez alguém encontre isso aqui um dia e saiba que eu e os meus
lutamos para sobreviver. E lutamos bravamente.
***
Ver um caos generalizado é totalmente perturbador. A dor, o
sofrimento, o desespero, o pânico, o medo, tudo a flor da pele. Pessoas
correndo, gritando, chorando, morrendo. E para piorar tudo, as criaturas.
Mortos vivos sedentos de carne e sangue com um único objetivo: Matar. Nem a
pessoa mais louca da terra se imaginaria numa situação dessas. Foi um massacre.
Eu ainda escrevia no blog quando os tiros começaram. Um, dois,
dez, setenta, cem. Muitos tiros. Metralhadoras, pistolas e outras armas que eu
não conheço. Começou a correria entre os militares. Nesse instante as pessoas
já começaram a se desesperar. Crianças começaram a chorar. Alguns começaram a
passar mal. Meu irmão estava ao meu lado. A sua cara parecia de surpresa, com
certeza assustado. Ele não fazia ideia do que estava acontecendo do lado de
fora do quartel. Ele ficou em pé e pediu para eu tentar ouvir algo no rádio.
Peguei o rádio e tentei ouvir algo. O som de tiros era ensurdecedor. Mas uma
coisa eu consegui ouvir;
– São muitos! – gritou um soldado.
– Recuem! – gritou outro.
Assim que ele olhou pra mim e viu minha cara de assustado o alarme
soou. Um ensurdecedor alarme. PDA. Plano de defesa do aquartelamento. Então os
militares começaram a entrar em forma de combate. Aguardando uma guerra que
estava prestes a começar. Gustavo foi sair correndo e eu segurei seu braço.
– Chegou a hora. Não temos o que fazer. – falei para ele.
Ele olhou para os militares em forma e pensou. Talvez estivesse
mais assustado do que eu. Pobre irmão. Seu uniforme militar às vezes me fazia
esquecer que ele ainda era um garoto de vinte anos.
– Vamos. – ele disse.
Enquanto corríamos em direção a Amanda que já estava em pânico, Gustavo
ouviu no rádio que os militares já haviam recuado para o portão principal. Foi
então que ouvimos algo mais. Uma explosão. Olhei para ele que me disse simples
e curto;
– Granada.
Carlos. O Sargento que fazia parte do nosso plano se aproximou.
Trocou algumas palavras com meu irmão e saiu correndo. Foi dar continuidade ao
nosso plano. Me aproximei do meu irmão e imediatamente ele percebeu que
estávamos em problemas. Ele correu para avisar o resto do pessoal que havia se
juntado a nós.
O inferno estava se aproximando. Era hora de fugir.
***
“Desespero é a aflição em se ver sem esperanças”.
Não me recordo se li ou ouvi essa frase uma vez. Só sei que ela
retrata totalmente o inferno que nós estávamos vivendo naquele quartel.
Cerca de dez minutos depois que meu irmão ouviu no rádio que os
soldados haviam recuado para o portão principal, eu ouvi outro aviso. “Eles
haviam chegado”! Sim, as criaturas já estavam no portão principal. É um portão
de grade enorme, mas não é resistente. Nada resistente. Os tiros e as
explosões, causadas pelas granadas, continuavam. Naquele momento eu já estava
preparado para fugir, juntamente com meu irmão, Amanda e mais quatro pessoas
que fizemos amizade. Carlos, o Sargento com seus quarenta e poucos anos. Sua
esposa Sofia, também com essa faixa de idade. E dois rapazes, primos, André e
Ricardo. Os dois deveriam ter uns vinte e poucos anos. Estávamos esperando
Carlos, que por sinal estava demorando.
Foi então que vimos à correria. Eu sinceramente já esperava por
isso. As pessoas que estavam próximas ao portão principal correram para os
hangares mais distantes, no caso o nosso, que era um dos maiores. A rua estava
lotada de pessoas correndo, gritando, tropeçando uma nas outras. Os soldados
que faziam uma “ultima linha de defesa” ficaram sem reação. Abriram caminho
para a multidão desesperada. Enquanto isso a chuva apertava, deixando a
situação ainda mais horrível.
Ouvi no rádio que o numero de soldados mortos já era grande. Então
vimos ao longe o inferno. Soldados recuavam com rapidez. Através de viaturas,
caminhões ou correndo. Quem estava a pé continuava atirando ou jogando granada.
Mesmo com a forte chuva nós os enxergamos. Dezenas, centenas e talvez milhares
deles. Muitos, mas muitos mesmo. Homens, mulheres, crianças. Jovens, velhos.
Brancos, negros. De todos os tipos. Muitos pareciam seriamente mutilados, com
partes do corpo seriamente feridas e expostas. Na face o terror. A vontade de
matar. O anseio em sentir o gosto do sangue correndo pela garganta. Eram
muitos. Estávamos acabados.
Naquele momento Carlos se aproximou e me deu uma mochila. Estava
totalmente pesada. Eu sabia o que havia ali dentro. Olhei novamente pra ver se
estávamos todos reunidos. E então corremos. Sim, corremos.
– Mas e o Rodrigo? – gritou Amanda enquanto meu irmão a puxava
pelo braço.
– Sinto muito Amanda. Não temos tempo para isso! – eu gritei. –
Todo mundo que estava lá na frente correu para cá. Rodrigo deve estar entre
eles. Vamos.
Amanda não reagiu. Sabia que seria suicídio não fugir dali. Olhou para
trás uma ultima vez. E deixou ser levada.
Saímos da frente do hangar e fomos em direção à estrada de terra
que passava por detrás dele. Aquele era um bom plano, se não fosse por uma
simples coisa. Muitos acabaram nos seguindo. Ainda bem que meu irmão e eu
pensamos que aquilo realmente poderia acontecer. Muitas pessoas correram atrás
de nós, achando que também estávamos fugindo dali para sobreviver. Isso era
verdade, mas tínhamos um plano já montado. Assim que começamos a nos afastar do
hangar a escuridão começou a tomar conta da estrada de terra. Carlos, meu irmão
e eu pegamos três lanternas que já havíamos trazido para isso. Carlos, que
conhecia muito bem o lugar, foi nos guiando. Em certo momento ele desligou sua
lanterna e pediu para meu irmão e eu desligarmos a nossa. Então nos guiou para
um caminho a esquerda, para dentro da mata. Dentre os muitos que nos seguiam,
alguns também possuíam lanterna. A forte chuva atrapalhava um pouco a visão,
então eles não viram que havíamos saído da estrada. Seguiram pela direita,
continuando a estrada e foram embora.
– Nosso caminho não é pela estrada. Não nesse trecho. – disse
Carlos. – Vamos seguir pela mata e com certeza vamos chegar onde temos que
chegar. – concluiu ele, já saindo andando.
Nós o seguimos mata adentro. Não podíamos acender as lanternas,
senão seriamos vistos. Então andamos em fila indiana, cada um com a mão no
ombro do outro. Carlos foi guiando. Ao longe ainda ouvíamos tiros, mas dessa
vez eram em menor quantidade. A gritaria continuava. Os gritos das pobres
pessoas perecendo nas mãos daquelas criaturas. Tínhamos que sair dali
rapidamente.
Chegamos então a um ponto que saímos novamente na estrada.
– Estamos bem à frente da multidão. – disse Carlos.
Continuamos pela estrada e chegamos a um ponto que fazia parte do
nosso plano. Lá estava ela. A viatura militar que usaríamos para fugir. Assim
que nos aproximamos do carro, eles apareceram. Quatro homens, saindo de não sei
onde.
– Vocês estão fugindo? Precisamos de ajuda. Podemos ir com vocês?
– perguntou um dos rapazes. No mesmo instante eu reconheci a voz.
– Mateus? – perguntei.
– Gabriel? – perguntou o rapaz me reconhecendo.
Mateus era um amigo. Havia trabalhado comigo ano passado. Desde
sua saída do trabalho eu não tinha contato com ele. Não sabia que ele estava
refugiado no quartel. O reencontro seria motivo de celebração, não fosse o
inferno que estávamos vivendo. Mas algo pior ainda aconteceu.
Eu sabia que não teria como ajudar todos que estavam com Mateus. A
viatura estava equipada com coisas que Carlos foi colocando ao longo do tempo
que bolamos o plano. Só tinha lugar para os que estavam conosco. Mais um no
máximo.
– Sinto muito. – disse Carlos. – A viatura está lotada.
– Por favor, Gabriel? – pediu Mateus.
Eu achei que os rapazes que estavam com ele também iriam se
desesperar e começar a implorar por ajuda. Mas algo mais estranho aconteceu. Um
deles, o mais velho, deu um passo à frente. Segurava na mão uma arma. Acho que
era um revolver 38. Ele jogou a luz de sua lanterna no rosto de Carlos e falou;
– Então vamos ter que tirar essa viatura de vocês.
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