17° Registro - Despedidas


Abri meus olhos e percebi uma movimentação na cozinha. Era Amanda preparando um café.

– Que horas são? – perguntei.
– Um pouco mais de sete horas da manhã.

Me levantei e fui até o banheiro lavor o rosto. Ao voltar Amanda ainda estava na cozinha.

– E o Rodrigo?
– Ontem ele finalmente falou algo. – disse ela. – Me agradeceu por estar cuidando dele.
– E?
– Quer saber se ele falou de você?
– Por favor.
– Falou. Ele te culpa pela morte da mãe dele. Disse que você demorou muito para sair do prédio em que morava e vir pra cá. É verdade?
– Sim. – concordei. – É verdade. Mas eu tentei ser cauteloso. Tínhamos que estar preparados para sair. Eu também estou atrás de entes queridos. Meu irmão está em algum lugar dessa cidade do inferno. Isso se ele estiver vivo. E minha namorada... Minha namorada...
– Não precisa dizer mais nada Gabriel. Eu entendo. Porem, Rodrigo com certeza não irá com você.
– Eu já imaginava. – sussurrei. – E você?
– Não posso deixa-lo assim. – disse ela. – Encontrar ele nessa situação remexeu com um sentimento a muito adormecido.
– Cuide dele Amanda. Eu preciso partir. Preciso encontrar os meus.
– Que você tenha mais sorte do que Rodrigo e eu. – disse Amanda. – Posso parecer mais forte, mas ainda não aceitei a morte do meu pai. Estou despedaçada por dentro. Cuidar do Rodrigo está servindo pra manter minha cabeça ocupada.
– Concordo. Porem, não posso deixar vocês nessa situação. – disse eu.
– O que está pensando em fazer? – perguntou Amanda curiosa.
– Estava pensando em olhar as casas vizinhas e trazer alguns mantimentos e objetos necessários pra cá. Vocês não podem se esquecer de que a área de lazer está infestada dessas criaturas. Caso esses zumbis acabem saindo do condomínio, irão acabar passando por aqui.
– Eu vou com você olhar as casas vizinhas. – disse Amanda.
– Então vamos planejar tudo.

***

Temos um plano. Na teoria parece ser fácil de executar. Na prática, quero ver.

Assim que Amanda levou o café para Rodrigo e voltou, eu fui para os fundos da casa e olhei pela janela. Aquela parte do condomínio estava vazia. A portaria estava toda quebrada, o portão totalmente aberto e amassado. Não havia nenhuma criatura a vista. Nos reunimos na sala e decidimos o que fazer. Amanda teve uma ideia, mas foi rapidamente descartada. Era um plano bom, mas precisaríamos ter um caminhão. A ideia era vasculhar todas as casas a procura de alimentos e coisas que pudessem ser trazidas pra cá. Eu disse que não teríamos onde levar tudo isso. Então decidimos em reunir as coisas da casa do Rodrigo, da Amanda e da casa vizinha. Sim, iriamos roubar a casa vizinha.

Assim que saímos correndo pela rua, percebemos que a porta estava aberta, o que já era um mau sinal. Amanda e eu entramos lentamente. Paramos na porta e fizemos silencio absoluto. Não ouvimos nada. Na entrada as coisas já começaram a ficar feias. Pegadas de sangue, nos dois sentidos, entrando e saindo da casa. A sala estava toda desorganizada. O sofá estava manchado de sangue e virado. A TV quebrada e jogada no chão. Fomos para a cozinha e começamos a vasculhar tudo. Pegamos tudo que poderíamos levar. Encontramos algo que “alegrou” nosso dia. Um pequeno botijão a gás. Pelo peso está cheio. O dono da casa deveria ser um pescador. Esses pequenos botijões servem para cozinhar coisas em acampamentos e pescarias. Você abre a pequena válvula em cima e usa um fósforo. Maravilha! Sei disso porque meu pai era pescador. Meu pai, minha mãe. Fico feliz deles não estarem entre nós. Não desejaria esse sofrimento para eles. Enfim. Com esse botijão eu poderei levar comida de verdade. Então começamos a pegar arroz, feijão, macarrão. Foi então que tudo aconteceu. Enquanto mexíamos nos armários, ouvimos um barulho muito forte. Tinha vindo do andar de cima. Não precisaríamos ver o que era, mas o ser humano é um curioso desgraçado. Eu estava armado, afinal, estava “seguro”. Como eu estava enganado. Subimos lentamente as escadas, mas não ouvimos mais nada. Em cima, um corredor virava para a esquerda onde havia quatro portas. Com certeza os quartos e banheiros. Minha perna tremia, meu coração estava totalmente acelerado. Com a arma na mão eu avancei. Amanda atrás de mim, segurando meu braço. A primeira porta estava fechada, decidi que não abriria. A segunda porta estava um pouco aberta. Amanda estava com um pedaço de ferro. Ela abriu lentamente uma das portas, e foi quando nosso mundo desmoronou. Era um quarto de criança. Um maldito quarto de criança. Todo pintado de azul, com bichinhos na parede. Um berço. Droga. Eu nem queria imaginar o que tinha dentro do berço. Foi então que ele surgiu. Do nada uma enorme sombra surgiu e caiu sobre Amanda. Era um “deles”. Um zumbi. O homem, com uma camisa preta e uma calça cinza toda rasgada saltou sobre Amanda. Num ato de total adrenalina misturada com desespero eu atirei. Mas merda! A arma não funcionou! Não pensei duas vezes e tomei o pedaço de ferro das mãos de Amanda, que lutava para afastar a boca do zumbi de perto de seu rosto. Com um chute eu fiz o homem cair ao lado dela. Com um golpe certeiro eu desmontei o coitado. O ferro bateu bem na testa do pobre homem e abriu um considerável buraco. Mas não parei ai, pois ele ainda estava “vivo”. Com outros golpes eu fui abrindo a maldita cabeça daquele ser. Ele já estava morto e Amanda tentava segurar minha mão para eu parar. Mas eu não queria parar, eu queria descontar toda minha raiva, meu desespero, meu medo. Enquanto ainda batia no já morto homem eu comecei a chorar. Sentei no chão e desandei a chorar. Amanda se virou e também começou a chorar. Depois que me levantei, fiquei olhando para aquele homem.

Saímos da casa com as coisas. Agora estou pronto para partir. Tomei um banho e me alimentei bem. Não sei quando será minha próxima “boa refeição”. Mas faltava uma coisa para fazer. Despedir-me do Rodrigo.

Amanda insistiu para eu não fazer isso, mas eu precisava fazer.

Subi as escadas. A porta do quarto da mãe de Rodrigo estava fechada. O cheio podre ali em cima era bem mais intenso do que embaixo. A porta do quarto de Rodrigo estava aberta. Ao me aproximar encontrei Rodrigo lendo um livro. Ele olhou pra mim e imediatamente voltou a ler o livro. Aparentava estar melhor. A ferida na cabeça causada pela batida no criado mudo era pequena.

– Vim me despedir. – finalmente falei. Ele não abriu a boca. – Perdão por qualquer coisa Rodrigo. Sei que nenhuma palavra que eu disser mudará alguma coisa.
– Então cala a boca. – disse ele ainda com os olhos no livro.
– Entendo. – sussurrei. – Adeus cara. Adeus.
– Desejo que você encontre o mesmo sofrimento que eu encontrei aqui. – disse Rodrigo. Ao me virar percebi que lágrimas escorriam enquanto ele falava. – Desejo que você encontre sua namorada morta, seu irmão morto, todos mortos e devorados por essas criaturas.
– Adeus Rodrigo. – Sai do quarto.

Meu sangue havia fervido por alguns segundos, mas me controlei. Rodrigo não sabia o que estava falando. Ele ainda estava alterado pelo fato de ter atirado na própria mãe. Não o culpo. Eu poderia ter feito e falado as mesmas coisas.

– Assim que eu for embora, peça para Rodrigo te ajudar com as coisas.
– Peço sim. Boa sorte! – disse ela me dando um abraço. – Obrigado por salvar minha vida.
– Por nada.

Agora estou preparado para sair. Já coloquei na caminhonete as coisas que eu separei pra mim. Ainda vou continuar levando o notebook. Vou aproveitar cada minuto que resta até o sinal da internet ir para o saco de vez. Estou partindo para a casa da minha namorada.

E lá vamos nós outra vez...

Postado 05/08/2012 ás 13h11. Taubaté-SP

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